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A Urgência Automática e seus Custos Subjacentes

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Reflexões sobre o ritmo contemporâneo e a arte de desacelerar

O discurso mais recorrente hoje afirma que vivemos tempos em que a urgência se tornou um valor imperceptível, infiltrando-se suavemente sob a pele dos dias e regendo gestos apressados, olhares distraídos e decisões impulsivas. No compasso frenético da modernidade, a pressa parece invisível — uma força silenciosa que dita o ritmo do trabalho, das relações e até do lazer.

Mas essa é apenas uma meia verdade. A “pressa como estilo de vida” sempre esteve presente, como uma ameaça entrincheirada à espreita dos desatentos, independentemente do contexto tecnológico de cada época. Falo com a autoridade de quem viveu — e ainda vive — a escalada imparável dos meios tecnológicos em todos os campos da vida humana.

Se hoje experimentamos a sofisticação da integração digital e da inteligência não biológica, que teoricamente deveria facilitar a vida, também é fato que o sarrafo das demandas se elevou de forma significativa. Somada à instabilidade trazida pela velocidade das transformações estruturais, essa condição cria o clima perfeito para sermos arrastados pela tempestade da pressa.

Décadas atrás, o cenário não era tão diferente se ajustarmos nossa percepção para equilibrar a equação prazo–tecnologia–recursos humanos. Uma analogia interessante pode ser feita com o futebol: comparar o jogo de hoje com o de décadas passadas exige considerar as mudanças táticas, os avanços em equipamentos e a evolução da preparação física. Só assim a avaliação se torna justa.

Independentemente do tempo histórico, o custo de viver no mundo paralelo do automatismo permanece alto — ainda que raramente reconhecido de forma clara e direta.


A paisagem da pressa cotidiana

O aplicativo do despertador soa estridente, o celular já está na mão, as mensagens disputam a atenção antes mesmo do primeiro gole de café. O café, por sua vez, é engolido às pressas, entre o rolar das manchetes do dia e a lista mental de tarefas.

Nas ruas, os corpos se movem acelerados e mecânicos, indiferentes à luz que se filtra pelas folhas das árvores, ao cheiro fresco da chuva da madrugada ou às expressões de quem cruza o caminho. Nos escritórios, reuniões se sucedem em fila, prazos comprimem o pensamento, e a produtividade é medida por métricas frias — aptas a quantificar entregas, mas incapazes de captar a qualidade do processo ou do produto.

O dia chega ao fim e instala-se a enganosa sensação de dever cumprido — não pela realização de algo realmente valoroso, mas pelo simples cansaço acumulado após horas excessivas de dedicação. É uma dinâmica que se assemelha a uma relação abusiva: sempre há algo faltando, sempre uma lista de tarefas empurrada para o dia seguinte.

O combustível dessa lógica desgastante é o reconhecimento ritualizado, sustentado pela mítica expressão: “vestir a camisa da empresa”. Assim, o modelo se perpetua — e tudo se repete, incansavelmente, dia após dia.


O modo automático: sobrevivência ou prisão?

Funcionar no automático é, até certo ponto, um mecanismo de sobrevivência. Em meio a tantas demandas e ciente de sua grande necessidade de consumo, o cérebro economiza energia, recorrendo a hábitos e respostas prontas. Mas, quando esse piloto automático passa a ser o modo dominante, o preço que se paga é normalmente alto: perde-se presença, profundidade e a capacidade de sentir e intuir.

Conversas tornam-se superficiais, atividades reduzem-se a obrigações, e o prazer é substituído pelo simples alívio de “terminar”. A vida, assim, se estreita: decisões sem reflexão, emoções abafadas e criatividade sufocada pela repetição e urgência. O que poderia ser ritual vira obstáculo.

Em minha trajetória passada, vivi intensamente esse cenário em todos os seus aspectos. Carregava, incrustado no subconsciente, o propósito de me tornar um “grande homem”. Nada se comparava a essa meta na escala de prioridades da vida e, dentro dos limites da ética, estava disposto a pagar o preço que fosse necessário para alcançá-la.


O custo invisível: saúde, relações e sentido

A pressa crônica cobra caro. O corpo, mantido em alerta constante, abre espaço para ansiedade, insônia e doenças ligadas ao estresse. A mente, saturada de estímulos, perde a capacidade de contemplar, imaginar e criar.

Nas relações, a urgência impede o encontro genuíno: olhares que não se reconhecem, palavras que não ecoam. A amizade, o amor e a solidariedade exigem tempo, atenção e cuidado — justamente o que a pressa rouba.

E o sentido da vida? Também se esvai. O propósito nasce da pausa, da atenção ao detalhe, da capacidade de valorizar o instante. Quando tudo é correria, a existência vira uma sequência indistinta de tarefas, sem memória nem marca.

E foi exatamente isso que aconteceu comigo: em um belo dia, a conta chegou. Após um colapso de exaustão, mergulhei em um processo doentio de pânico que se estendeu por cerca de seis meses. Uma angústia profunda, apatia paralisante e dores sem explicação clínica me acompanharam, enquanto as prescrições médicas ofereciam apenas drogas paliativas — capazes de silenciar sintomas, mas incapazes de alcançar a causa.

A virada só aconteceu quando fiz uma pausa real: um tratamento que integrava corpo, mente e espírito, devolvendo equilíbrio e sentido à minha vida.


A pressa é invisível

Hoje, tecnologia turbinada e a perpetuação cultural da velocidade instauraram a lógica do “tudo deve ser imediato”, “ágil”, “disponível”.

A comparação constante nas redes sociais potencializa a sensação de insuficiência e o medo da defasagem. A valorização do multitasking reforça a ilusão de que lentidão é ineficiência — quando, na verdade, é apenas outro ritmo, mais próximo dos ciclos naturais da vida.

A pressa se tornou invisível porque vem sendo naturalizada. Respiramos sua atmosfera sem perceber.


Desautomatizar: a arte de retomar o tempo

Desacelerar não é simples. Exige primeiro reconhecer que há um preço oculto em viver apressado. Depois, cultivar a atenção: respirar fundo ao acordar, notar o entorno no trajeto, saborear uma refeição sem distrações.

Retomar o tempo é redescobrir o prazer do que é feito com cuidado. É permitir-se silêncio, espera, tédio — sem culpa. É abrir espaço para o imprevisto, a contemplação, o “não fazer nada”.

No trabalho, pode significar reuniões mais curtas e objetivas, limites claros entre vida pessoal e profissional, e respeito ao tempo de maturação das ideias. Nas relações, pode significar ouvir de verdade, olhar nos olhos, interessar-se genuinamente pelo outro.


A potência da presença

A presença é o antídoto contra a pressa. Estar presente é viver o momento sem antecipar o próximo compromisso nem revisitar o anterior.

A presença dilata o tempo: ele se torna mais profundo, generoso, humano. Pesquisas mostram que pessoas capazes de desacelerar experimentam mais satisfação, criatividade e bem-estar. Afinal, a qualidade da vida não se mede pela quantidade de tarefas cumpridas, mas pela intensidade com que se vive o que realmente importa.


O caminho será redescobrir o ritmo esquecido

Desafiar a pressa invisível é transformar a eficiência em dança, não em prisão. É escolher, com lucidez, o compasso de cada passo: saber quando acelerar e quando repousar. É honrar o ritmo da própria alma, em vez de se curvar ao compasso imposto — antes que a vida peça, em colapso, a pausa que esquecemos de cultivar.

É preciso reaprender a arte do tempo: cultivar pausas, valorizar o silêncio, celebrar o inútil, o gratuito. Porque a pressa pode até ser invisível, mas o custo do automático é real. Só a presença devolve cor, sentido e encantamento ao tecido de cada dia.

 
 
 

2 comentários


Boa tarde Laudio! Parabéns pelo seu post sobre A Urgência Automática e seus Custos Subjacentes. Trata-se, sem dúvida, de uma abordagem iluminada e profunda sobre esta verdadeira pandemia que prejudica sensivelmente a qualidade de vida e a busca da felicidade para um número cada vez mais significativo de pessoas.

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Laudio Nogues
Laudio Nogues
27 de set.
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Boa tarde Ricardo, muito obrigado por seu comentário. Sim, é na verdade, um dos sintomas da Normose (doença da normalidade) em que estamos mergulhados. O primeiro passo para a cura é notar, ampliando a consciência em direção a outras possibilidades de condução intensional da vida. Forte abraço

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